[Conto] Paulo, a Noite e o Escuro - última parte

terça-feira, 30 de novembro de 2010


Salut, queridos! Demorou um pouquinho, mas eu trouxe a segunda e última parte do conto. Agradeço pela presença de vocês aqui no blog. 


Boa leitura!


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Certa ocasião, numa dessas vagas madrugadas, Paulo descobriu algo maravilhoso. Cansado de enfrentar tantas doenças, desejou com profundidade deixar de ser enfermo. Ele repetiu seu desejo por três vezes, quase sussurrando, e logo uma força estranha invadiu o seu corpo, deixando-o revigorado, tornando-o um homem novo. O jovem ficara apavorado, aquilo seria impossível para alguém que possuía uma saúde tão frágil. Mas sua mente era mesmo teimosa, ela o obrigava a tentar de novo. O rapaz fez pensamento forte e repetiu outro desejo por três vezes, como antes, quase sussurrando. No dia seguinte, o que pedira estava realizado. Teria ele um dom, um poder especial, talvez causado pelas noites em claro e pelos dias amargos de cansaço? 

Paulo guardou aquele segredo e passou a usar seu dom de desejar em favor de todos. Deu saúde aos doentes, felicidade aos tristes, força aos fracos, riqueza aos pobres, simplicidade aos orgulhosos, sensibilidade aos desumanos, compaixão aos impiedosos... Ele tentava de tudo, sempre obtinha êxito. Nada de mau lhe atingia, não mais ficava doente, acontecia apenas o que profundamente desejava. No entanto, algo ainda o entristecia. Paulo tinha um poder incrível, conseguia alcançar tudo através dos seus profundos pedidos, exceto uma coisa...

Por mais que pedisse, Paulo não podia ter aquilo: dormir à noite, justo o que ele mais almejava. Foi quando o jovem percebeu que estava na hora de esquecer sua antiga busca, anular seu principal desejo, para sustentar o dom recebido e ajudar, com ele, ao mundo.

Mesmo decepcionado, ele aceitou o desafio e, como fizera a vida toda, continuou fingindo.


Meses depois, o então reprimido e responsável vespertino já não era alvo de chacotas. Paulo ainda não dormia, permanecia trabalhando durante o dia e vagando à madrugada; mas, agora, ele usava os poderes recebidos para renovar as próprias forças. Tornara-se um funcionário exemplar, conforme o chefe afirmava, o melhor dentre todos na empresa. Finalmente fora aceito, valorizado e reconhecido. Era um homem aclamado por todos, requisitado, cobiçado. O que mais Paulo poderia desejar? Sim, ele poderia, e desejou, e alcançou.


Em pouco tempo, o jovem pacato tornou-se o homem mais rico e próspero do mundo. Ele casou-se com a miss universo daquele ano e teve os filhos mais inteligentes, saudáveis, bonitos e carinhosos da face da terra. Sua vida ficara perfeita, do modo como nem mesmo o mais sábio dos seres humanos ousaria imaginar. Porém, Paulo se envolveu tanto com as coisas palpáveis da vida, que terminou se esquecendo de algo extremamente importante.


Um dia, o homem mais poderoso do mundo acordou e percebeu que não podia usar seu precioso dom, descobriu que se esquecera de como fazia para desejar.


Aos poucos, o poder de Paulo começou a decrescer, e diminuiu até escassear. Perdendo-se dos seus desejos, voltou a ser o ele antigo; ficou fraco, doente, inseguro. Estava sofrendo outra vez, sentindo o cansaço extremo que, por causa da idade, já não conseguia disfarçar. As marcas das noites não dormidas e dos dias de trabalho pesado, sem a ajuda renovadora dos poderes, estavam claras em sua face, estampadas.


Um dia, Paulo chegou exausto em casa e notou que murmúrios suspeitos vinham da cozinha. Com passos meio débeis, ele caminhou até lá. Era a esposa e os filhos que conversavam. O homem ficou contente, com o coração acelerado. Ele tinha bons motivos para sentir-se daquele jeito, seu aniversário estava próximo; todos os anos, a doce miss universo encontrava um jeito novo de comemorar o tal dia glorioso.


O dono do mundo aproximou o ouvido da porta, a fim de escutar melhor, e ficou decepcionado. Eles não combinavam como seria a sua festa, discutiam sobre outro assunto. As palavras da família, embora sussurradas, eram exatas; eles suspendiam uma questão há muito esquecida: a esquisitice de Paulo.


Entre tramas e protestos, por fim, chegaram a um senso comum, decidiram interditá-lo. Decretariam que Paulo estava louco. Afinal, que lógica havia em um homem daquela idade e extremo sucesso, nunca dormir à noite, padecendo de medo do escuro?


Paulo sentiu-se como na infância, quando era levado pelos pais de um lado para o outro. Camuflara as suas diferenças a vida inteira, mas sentia que já não tinha forças para fazê-lo. Sabia que, caso não interviesse à ação da família, terminaria novamente ridicularizado. Não! Por tudo que havia sofrido, não poderia aceitar aquilo.


Agoniado, ele mergulhou em pensamentos. Sua mente, mesmo cansada, continuava insistente, teimosa. Ela dizia que talvez houvesse um modo de recuperar o dom e tornar a esconder o antigo problema que tanto o afetava.


Esperançoso, o homem correu ao quarto, trancou-se e ficou sentado na cama. Fez tudo que podia, esforçou-se ao máximo para recuperar a fórmula perfeita do dom de desejar. Estava difícil... Por mais que ele tentasse relutar, seus sentimentos desviavam-no do foco, atiravam-no à incessante ideia de adquirir uma nova estratégia para voltar a ser aceito.


Desse modo, horas se passaram e Paulo não conseguiu recordar aquele grande segredo. O triste homem respirou fundo, sabia que não tinha outro jeito. Nascera fadado àquele fim, faria o que era preciso.


Paulo pegou canivete, papel e caneta, sentou-se à escrivaninha e escreveu o seu bilhete.


Com a arma em punho, o homem mais rico do mundo, contemplou-se no espelho pela última vez. Estava decidido, jamais se permitiria voltar a ser escarnecido. Um gelo tomou conta do seu corpo, ele sentiu raiva por tudo que havia enfrentado. Paulo respirou fundo, ergueu o canivete e cegou os olhos. Nunca mais veria a luz do sol, ficaria para sempre na escuridão. Talvez assim, pudesse enganar-se, fingir que o dia era a noite e reconquistar sua dignidade, vivendo igual a todo mundo.


Apenas três dias após o ocorrido, o bilhete fora encontrado. Surpreendentemente, a inscrição dizia: sou igual a todos e não tenho medo do escuro. 

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